Instituto Brasileiro de Auditoria de Obras Públicas

O texto da Nova Lei de Licitações e Contratos – NLLC, Lei nº 14.133/2021, trouxe diversas preocupações a esse Instituto no tocante a sua aplicação para obras e serviços de engenharia, e uma delas diz respeito ao art. 159, seja sob o ponto de vista da sua constitucionalidade, seja sob o ponto de vista da sua aplicação a partir da redação final da lei, após a sanção.

A redação desse dispositivo restou assim consignada na Lei nº 14.133/2021, in verbis:

“Art. 159. Os atos previstos como infrações administrativas nesta Lei ou em outras leis de licitações e contratos da Administração Pública que também sejam tipificados como atos lesivos na Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013, serão apurados e julgados conjuntamente, nos mesmos autos, observados o rito procedimental e a autoridade competente definidos na referida Lei.
Parágrafo único. (VETADO).” (grifos não originais)

O Projeto de Lei nº 4253/2020[1], que havia sido finalizado no Senado Federal e enviado à sanção, continha outra disposição no parágrafo único desse artigo, in verbis:

“Art. 159. Os atos previstos como infrações administrativas nesta Lei ou em outras leis de licitações e contratos administrativos da Administração Pública que também sejam tipificados como atos lesivos na Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013, serão apurados e julgados conjuntamente, nos mesmos autos, observados o rito procedimental e a autoridade competente definidos na referida Lei.
Parágrafo único. Na hipótese do caput deste artigo, se for celebrado acordo de leniência nos termos da Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013, a Administração também poderá isentar a pessoa jurídica das sanções previstas no art. 156 desta Lei e, se houver manifestação favorável do tribunal de contas competente, das sanções previstas na sua respectiva lei orgânica.” (grifos não originais)

A Lei nº 14.133/2021 foi, então, sancionada mantendo-se o caput do art. 159, com veto apenas ao parágrafo único. As justificativas encontram-se na Mensagem de Veto nº 118/2021 [2] :

“A Controladoria-Geral da União e a Advocacia-Geral da União opinaram pelo veto ao dispositivo transcrito a seguir:
Parágrafo único do art. 159 (…)
Razões do veto
“A propositura legislativa estabelece que na hipótese de ser celebrado acordo de leniência nos termos da Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013, a Administração também poderá isentar a pessoa jurídica das sanções previstas no art. 156 desta Lei e das sanções previstas na sua respectiva lei orgânica.
Entretanto, e em que pese o mérito da propositura, a medida, ao prever a participação de órgão auxiliar do Poder Legislativo na aplicação de instrumento típico do exercício do Poder Sancionador da Administração Pública, viola o princípio da separação dos poderes, inscrito no art. 2º da Constituição da República.
Ademais, a extensão dos efeitos promovidos pelo acordo de leniência de que trata a Lei nº 12.846, de 2013[3] se inserem dentro da função típica da Administração Pública e não se confundem com a atividade de fiscalização contábil, financeira e orçamentária exercidas pelo Poder Legislativo, o que acaba por extrapolar as competências conferidas pelo constituinte, por intermédio do art. 71 da Carta Magna.
Outrossim, a medida contraria o interesse público, ao condicionar a assinatura do acordo de leniência à participação do Tribunal de Contas respectivo, ainda que restrito às suas sanções, criando uma nova etapa no procedimento, o que poderia levar a um enfraquecimento do instituto.” (grifos não originais)

Sob o ponto de vista constitucional, há um possível conflito da redação final do art. 159 da NLLC com as competências dos Tribunais de Contas descritas no art. 71, inciso II, da Constituição Federal de 1988[4], in verbis:

“Art. 71. O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União, ao qual compete:
(…)
II – julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo Poder Público federal, e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público;” (grifos não originais)

Pela NLLC, foi estabelecido que infrações cometidas que sejam enquadradas como atos lesivos previstos na Lei Anticorrupção (LAC) – Lei nº 12.846/2013 sejam apuradas e julgadas pela autoridade competente estabelecida na referida lei. O art. 8º da LAC, por sua vez, estabelece essa autoridade, in verbis:

“Art. 8º A instauração e o julgamento de processo administrativo para apuração da responsabilidade de pessoa jurídica cabem à autoridade máxima de cada órgão ou entidade dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, que agirá de ofício ou mediante provocação, observados o contraditório e a ampla defesa.” (grifos não originais)

Conjugando-se, então, o art. 159 da NLLC com o art. 8º da LAC, nos casos em que infrações tenham sido cometidas em licitações realizadas pelo Poder Executivo, caberá à autoridade máxima do órgão contratante (lesado) a apuração do caso, haja vista a definição dos atos lesivos no art. 5º da LAC, in verbis:

“Art. 5º Constituem atos lesivos à administração pública, nacional ou estrangeira, para os fins desta Lei, todos aqueles praticados pelas pessoas jurídicas mencionadas no parágrafo único do art. 1º, que atentem contra o patrimônio público nacional ou estrangeiro, contra princípios da administração pública ou contra os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, assim definidos:
(…)
IV – no tocante a licitações e contratos:
(…)
f) obter vantagem ou benefício indevido, de modo fraudulento, de modificações ou prorrogações de contratos celebrados com a administração pública, sem autorização em lei, no ato convocatório da licitação pública ou nos respectivos instrumentos contratuais; ou
g) manipular ou fraudar o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos celebrados com a administração pública;” (grifos não originais)

Da leitura atenta do art. 5º, inciso IV, alíneas “f” e “g”, é possível apontar que os atos lesivos ali descritos constituem também espécies de superfaturamento de contratos públicos, o que atrai, sem sombra de dúvidas, a competência dos Tribunais de Contas para o julgamento final do prejuízo ao erário, por força do art. 71, inciso II, da Constituição Federal de 1988.

Dessa forma, a interpretação conjunta das normas leva à possível interpretação de que a redação do art. 159 da Lei nº 14.133/2021 terminou por excluir os Tribunais de Contas, a despeito das incumbências estabelecidas pela Constituição Federal, da apuração e julgamento dos casos de superfaturamento previstos no art. 5º, inciso IV, alíneas “f” e “g” da LAC, já que expressamente atribuiu essa competência às autoridades máximas de órgãos e entidades do Poder Executivo.

No âmbito federal, nos termos da Instrução Normativa TCU nº 71/2012, sobre Tomadas de Contas Especiais – TCE, na omissão dos entes lesados e do Controle Interno, pode o Tribunal de Contas, excepcionalmente, levar a efeito toda a apuração, até o seu julgamento final. Essa excepcionalidade virou regra nos grandes casos de quantificação de prejuízos no âmbito das obras públicas envolvidas na Operação Lava Jato e congêneres, gerando diversas TCE, que, com a redação do art. 159 da NLLC podem ser esvaziadas.

Pelo exposto, vislumbra-se uma potencial colisão do art. 159 da Lei nº 14.133/2021 com o disposto no art. 71, inciso II, da Constituição Federal de 1988. A redação dada ao art. 159 da NLLC, ao não ressalvar as competências dos Tribunais de Contas, pode ter incorrido numa inconstitucionalidade material, podendo prejudicar uma maior efetividade na auditoria de obras públicas.

Já sob o ponto de vista da aplicação do art. 159, outros pontos são de destaque a partir da análise da mensagem de veto ao seu parágrafo único, que aponta para interpretações também restritivas das competências dos Tribunais de Contas.

Naquela mensagem de veto, foi omitido que as Cortes realizam fiscalizações operacionais e patrimoniais para avaliar a gestão das entidades sob sua jurisdição. Também foi omitido o expresso poder sancionador das Cortes, previsto originariamente no art. 71, inciso VIII, da Carta Magna. Essas omissões acabaram embasando erroneamente o veto, uma vez que prevaleceu a tese de que essa atribuição constitucional, exercida por órgão independente e formado por um colegiado, representaria uma suposta extrapolação de competências.

O parágrafo único do art. 159 do PL 4253 deixava clara a intenção do Congresso Nacional de preservar as competências, constitucionais e legais, dos Tribunais de Contas, inclusive sua independência para aplicação das sanções previstas em suas respectivas Leis Orgânicas, evitando tentativas de usurpação de tais competências pelo Controle Interno.

Com a nova NLLC, o Controle Interno ganha poderes para, inclusive, tornar sem efeito sanções aplicadas por Tribunais de Contas. Assim, ao menos em tese, há uma enorme concentração de poder nas mãos de apenas dois agentes políticos, subordinados ao chefe do Poder Executivo: os Ministros da CGU e da AGU. Tal realidade posta-se em desalinho com a Intosai P_50[5]: “entidades fiscalizadoras que possuam poderes de aplicação de sanções, sendo caracterizadas como entidades com poderes jurisdicionais, necessitam que sua instância decisória possua garantias legais explícitas que assegurem sua independência em relação às autoridades públicas, a exemplo de inamovibilidade e vitaliciedade”.

Trata-se de uma inversão de papéis entre o Controle Externo, previsto na Constituição Federal, e o Controle Interno, o qual não foi desenhado constitucionalmente para ter poderes jurisdicionais, haja vista o disposto no art. 74 da Constituição Federal.

Por fim, vale mencionar que o trecho vetado estaria em consonância lógica com os incisos I e II do art. 30 da própria Lei nº 12.846/2013[6], dispositivos esses que preservam a aplicação de sanções da Lei nº 8.429/1992, que trata da improbidade administrativa, e de outras normas de licitações e contratos da administração pública, independente das sanções estipuladas na LAC.

Por todo o exposto, o Ibraop decidiu por apresentar essa carta às instituições organizadas e à sociedade para empreender esforços conjuntos na busca, no tocante ao art. 159 da Lei nº 14.133/2021, pela:
– derrubada do veto ao seu parágrafo único, de maneira a restaurar a competência das Cortes de Contas de aplicação das sanções previstas nas suas respectivas leis orgânicas no tocante a atos previstos como infrações administrativas nesta Lei ou em outras leis de licitações e contratos administrativos da Administração Pública que também sejam tipificados como atos lesivos na Lei nº 12.846/2013;

– declaração de inconstitucionalidade de todo o dispositivo, de maneira que os atos previstos como infrações administrativas nele previstos sejam julgados pelas Cortes de Contas, aplicando-se nesta instância as sanções previstas nas respectivas leis orgânicas.


[1] Disponível em https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8939824&ts=1615559848815&disposition=inline. Acesso em 05/05/2021.

[2] Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/Msg/VEP/VEP-118.htm. Acesso em 05/05/2021.

[3] No caso federal, é a CGU quem celebra o acordo, conforme art. 16, § 10, da Lei nº 12.846/2013.

[4] Reproduzido nas diversas constituições estaduais.

[5] INTOSAI. INTOSAI 50 Principles of jurisdictional activities of SAIs. 2019. Disponível em https://www.intosai.org/fileadmin/downloads/documents/open_access/INT_P_11_to_P_99/INTOSAI_P_50/INTOSAI_P_50_en.pdf. Acesso em 05/05/2021.

[6] Art. 30. A aplicação das sanções previstas nesta Lei não afeta os processos de responsabilização e aplicação de penalidades decorrentes de:

I – ato de improbidade administrativa nos termos da Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992; e

II – atos ilícitos alcançados pela Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, ou outras normas de licitações e contratos da administração pública, inclusive no tocante ao Regime Diferenciado de Contratações Públicas – RDC instituído pela Lei nº 12.462, de 4 de agosto de 2011.

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